| Foto de Andrea Piacquadio/pexels |
Nos últimos anos, a palavra “autocuidado” se tornou uma tendência nas redes sociais, no marketing e no discurso de bem-estar. Produtos de beleza, viagens, terapias alternativas, alimentos saudáveis e roupas confortáveis passaram a ser vendidos como símbolos do “cuidar de si”. Mas será que autocuidado é apenas consumir? Será que cuidar de si se resume a gastar com itens que prometem conforto e felicidade?
A cultura do consumo apropriou-se da ideia de autocuidado, transformando-a em mais uma ferramenta de venda. Embora seja legítimo e importante cuidar do corpo, buscar prazer e investir no próprio bem-estar, é preciso ampliar essa noção. O verdadeiro autocuidado vai muito além do que se pode comprar. Ele exige escuta, presença, consciência e, muitas vezes, enfrentamento de dores profundas.
Cuidar de si: muito mais do que um ritual estético
Tomar um banho relaxante, fazer skincare ou assistir uma série com um chá quente pode ser, sim, uma forma de cuidado — desde que venha de um gesto genuíno de atenção a si mesmo. O problema surge quando essas ações se tornam obrigatórias ou impostas como padrão de felicidade. A lógica do mercado transforma o cuidado em mais uma cobrança, gerando culpa em quem não consegue seguir esse roteiro idealizado.
Além disso, muitas vezes o autocuidado é apresentado como algo individualista, voltado para o desempenho: você precisa estar bem para ser produtivo, trabalhar mais, manter a aparência, render emocionalmente. Mas cuidar de si não pode ser apenas um meio para “funcionar melhor”. Ele precisa ser um fim em si mesmo, um gesto de amor-próprio e de reconhecimento da própria humanidade.
O cuidado como dimensão relacional e política
A filósofa estadunidense bell hooks lembra que “o amor é um ato de vontade — tanto a intenção como a ação”. Cuidar de si, nesse sentido, é também um ato político, uma forma de resistir a uma sociedade que valoriza o desempenho, o consumo e a pressa, mas desvaloriza a escuta, o descanso, a vulnerabilidade e o tempo interno.
Autocuidado é se permitir sentir, desacelerar, dizer não, descansar, chorar, refletir, pedir ajuda, reconhecer limites. É também perceber que ninguém se cuida sozinho. Precisamos de vínculos, de apoio, de comunidades que sustentem afetos e não apenas imagens idealizadas de bem-estar.
Como propõe a pesquisadora argentina María Medrano: “o cuidado não é apenas um ato individual, mas uma prática comunitária. É nas redes de apoio, nas amizades verdadeiras, nas trocas sinceras, que aprendemos a nos cuidar de verdade”.
Autocuidado também é enfrentar
Outro ponto importante: cuidar de si nem sempre é confortável. Às vezes, é colocar limites difíceis, sair de relações tóxicas, enfrentar medos, dizer verdades a si mesmo. Pode ser também buscar terapia, mudar hábitos, lidar com traumas, abrir mão de hábitos que anestesiam. É um processo que envolve coragem, não só conforto.
É necessário romper com a ideia de que autocuidado é um conjunto de rituais bonitos e tranquilos. Em muitos momentos, ele é um exercício de força, paciência e persistência diante das próprias dores. E, principalmente, é um processo contínuo, não uma meta a ser alcançada.
Além do eu: o cuidado como ética do comum
Em tempos de crises sociais, políticas e ambientais, pensar no cuidado apenas como algo privado é insuficiente. O cuidado precisa ser ampliado para o coletivo. Quando cuidamos do outro, do meio ambiente, da comunidade e da cultura, estamos também cuidando de nós. O filósofo Leonardo Boff nos lembra que “cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilidade e de envolvimento afetivo com o outro”.
Cuidar de si, portanto, está ligado ao cuidado com o mundo. Quando uma sociedade valoriza o cuidado em todas as suas dimensões — emocional, relacional, espiritual, ambiental e política — ela se torna mais saudável, justa e humana.
Conclusão
Autocuidado é importante, mas precisa ser libertador. Quando se limita ao consumo, se torna superficial e excludente. Mas quando se conecta com a escuta interior, com o respeito ao próprio tempo e com a construção de vínculos verdadeiros, ele se transforma em um caminho de transformação pessoal e coletiva.
Cuidar de si é uma prática diária de autocompaixão, resistência e presença. É um movimento profundo que vai da pele ao espírito, do silêncio à ação, do eu ao nós.
Referências bibliográficas:
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hooks, bell. All About Love: New Visions. Harper Perennial, 2000.
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Boff, Leonardo. Saber Cuidar: Ética do Humano – Compaixão pela Terra. Vozes, 1999.
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Medrano, María. “Cuidar-se em tempos sombrios: entre a delicadeza e a potência.” Revista Anfíbia, 2021.
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Han, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Vozes, 2017.
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Lorde, Audre. Sister Outsider. Crossing Press, 1984.
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