| Foto:Johannes Plennio/Pexels |
A palavra “meritocracia” entrou de vez no vocabulário popular como sinônimo de justiça, esforço e recompensa. Trata-se da ideia de que o sucesso de cada pessoa depende exclusivamente de seu mérito pessoal — dedicação, inteligência, persistência, disciplina. Em teoria, parece justo. Afinal, quem se esforça mais, deveria colher os frutos desse empenho, certo?
Porém, ao observarmos de perto a realidade de países desiguais como o Brasil, percebemos que essa lógica não se sustenta. O discurso meritocrático, embora sedutor, é frequentemente usado para mascarar privilégios, silenciar desigualdades históricas e culpar os mais vulneráveis por sua condição social.
O que é, de fato, a meritocracia?
Originalmente, o termo "meritocracia" foi popularizado pelo sociólogo britânico Michael Young, na obra satírica The Rise of the Meritocracy (1958). Curiosamente, ele não a apresentava como um ideal positivo, mas como uma crítica a uma sociedade que justificava suas desigualdades com base no “mérito”. Em vez de promover justiça, a meritocracia descrita por Young criava uma nova forma de elitismo — onde apenas os considerados "mais capazes" teriam valor, enquanto os outros seriam excluídos e responsabilizados por seus “fracassos”.
Na prática, a meritocracia só seria justa se todas as pessoas tivessem as mesmas oportunidades de desenvolvimento. Mas, como sabemos, não é isso que acontece.
Desigualdades no ponto de partida
Em uma sociedade profundamente desigual como a brasileira, as oportunidades são radicalmente diferentes dependendo da cor da pele, da renda familiar, da região onde se nasce, do gênero, da orientação sexual, do acesso à educação, da saúde, da segurança, da cultura, e de tantos outros fatores.
Enquanto algumas crianças crescem em ambientes ricos em estímulos, com acesso a escolas particulares, atividades extracurriculares, viagens culturais e apoio emocional, outras enfrentam desde cedo a fome, a violência doméstica, o racismo, o preconceito de classe, a evasão escolar, o trabalho precoce e a negligência institucional.
É possível falar em mérito quando alguns precisam vencer batalhas diárias apenas para sobreviver, enquanto outros já começam a corrida muito à frente?
A função ideológica da meritocracia
O mito da meritocracia cumpre uma função ideológica poderosa: ele serve para justificar os privilégios dos que estão no topo da pirâmide social. Ao dizer que "todos têm as mesmas chances", os mais favorecidos naturalizam suas conquistas como resultado de puro esforço, ignorando os benefícios herdados de gerações anteriores — como acesso a redes de influência, heranças financeiras, formação de qualidade e segurança.
Por outro lado, essa mesma lógica serve para culpar os mais pobres: se você não conseguiu "vencer", o problema é seu. É um discurso que desumaniza e transfere para o indivíduo a responsabilidade por falhas que, na verdade, são coletivas, estruturais e históricas.
Trabalhadores invisibilizados
O Brasil é um país onde milhões de pessoas trabalham em empregos essenciais e mal remunerados. São cozinheiras, motoristas de aplicativo, garis, vendedores ambulantes, babás, trabalhadores do campo, entregadores de bicicleta. Pessoas que se esforçam diariamente, muitas vezes com jornadas exaustivas, sem direitos garantidos. Onde está o reconhecimento por esse esforço?
A meritocracia ignora o valor de trabalhos que mantêm a sociedade funcionando. Ela enaltece apenas os “vencedores” visíveis: os empresários de sucesso, os jovens que passam em concursos públicos, os atletas premiados, os influenciadores milionários. Essa visão distorcida do mérito reforça desigualdades e silencia lutas.
Impactos emocionais e sociais
Além de tudo, a crença cega na meritocracia afeta a saúde mental. Muitas pessoas se sentem fracassadas, incapazes, improdutivas, mesmo quando fazem o possível e o impossível para viver com dignidade. São julgadas por não “dar certo na vida”, sem que se leve em conta as barreiras estruturais que enfrentam.
A pressão por performance, produtividade e sucesso cria uma cultura do cansaço, do individualismo extremo e da comparação constante. A sociedade passa a valorizar apenas quem "chega lá", desprezando histórias de resistência, coletividade e superação invisível.
Caminhos para uma justiça real
É fundamental desconstruir o mito da meritocracia para construir uma sociedade mais justa. Isso não significa negar a importância do esforço pessoal. Mas é reconhecer que o esforço só é eficaz quando há condições mínimas de dignidade, inclusão e apoio.
Uma justiça real exige políticas públicas que promovam equidade:
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Investimentos consistentes em educação pública de qualidade.
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Acesso universal à saúde, cultura e moradia.
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Políticas afirmativas que corrijam desigualdades históricas.
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Valorização do trabalho informal e do cuidado.
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Combate ao racismo, ao machismo e à LGBTfobia.
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Garantia de direitos sociais básicos.
Ao abandonar a ilusão de que todos partem do mesmo lugar, podemos finalmente olhar para as injustiças com responsabilidade coletiva. É necessário mudar o foco: de “quem merece mais” para “quem teve menos acesso” e “o que podemos fazer para equilibrar isso”.
Conclusão: mérito sem justiça é privilégio
A meritocracia, quando tratada como valor absoluto, é um mito que perpetua e legitima a desigualdade. Não há mérito onde não há oportunidade. É preciso, sim, valorizar o esforço, mas dentro de um contexto que reconheça os diferentes pontos de partida e as lutas invisíveis que tantas pessoas enfrentam diariamente.
Que possamos caminhar para uma sociedade que ofereça chances reais a todos e todas — e que, ao fazer isso, transforme o mérito em reconhecimento, não em exclusão.
Referências bibliográficas:
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Young, Michael. The Rise of the Meritocracy. Thames and Hudson, 1958.
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Souza, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Leya, 2017.
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Ribeiro, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. Companhia das Letras, 2019.
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Piketty, Thomas. O Capital no Século XXI. Intrínseca, 2014.
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Safatle, Vladimir. “O discurso da meritocracia e a naturalização da desigualdade.” Folha de S.Paulo, 2018.
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IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Relatórios Sociais, 2023.
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Instituto Ethos. “Desigualdades Sociais no Brasil”. Relatório, 2022.
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